Silêncio Sideral

Estávamos os quatro no corredor do prédio contigo à base de lançamento, aguardando a ordem de subida para a nave, naquela manhã de janeiro em Cabo Canaveral. Eu me sentia bem tranquilo e conseguia pensar em todos os detalhes. Precisava conter-me para não meter a mão no equipamento dos companheiros, pois imaginava que não estavam tão atentos. Teriam observado as válvulas de oxigênio? Os botões de volume de áudio em posições centrais? Chegava a estar um pouco ansioso, o que não é aconselhável. Finalmente a ordem de caminhar foi dada. Que alívio. Do elevador com paredes transparentes podíamos observar o entorno; próximo ao grande relógio de contagem regressiva a imprensa e os curiosos. Carla, minha esposa estaria ali, pensando nos detalhes que eu certamente não havia esquecido: a agendinha com orações que ela escrevera para eu fazer em momentos difíceis; o colírio, pó anticéptico para assaduras e os óculos. Começa a contagem regressiva: 5, 4, 3, 2, 1,… Confesso que esse é o melhor momento. Agora mesmo estou sentindo o endurecer dos pelos. No início um pouco lento, depois a virada. As conversas de áudio fazem-me lembrar da infância, quando brincávamos de rádio fonia. A mente fica cada vez mais acesa, devido à prática mental de se empolgar com a velocidade. Estamos agora perto da velocidade total de vinte e oito mil quilômetros por hora. O som e a vibração são desumanos, mas eu daria tudo para estar ali mesmo sentindo tudo aquilo. Pelo monitor à frente tenho a visão do fundo da nave, e vejo os módulos caírem; eles parecem suplicar para não serem desacoplados. A terra fica cada vez mais distante. Os sons e a vibração vão perdendo a intensidade. Em quinze minutos estamos no vácuo, onde a falta de atrito nos entrega à sensação de céu e nada mais se ouve além do roçar de sangue nas veias.

No afã de demonstrar as sensações experimentadas do cruzamento com os astros, alguns autores já comporam músicas repletas de sons siderais. Eles são feitos com notas agudas e variam seu volume sonoro, mas tentam expressar o que não pode ser produzido aqui junto às estrelas, minhas amigas estrelas agora, posso dizer com muita empolgação e lágrimas nos olhos. Mal posso acreditar que estou sentindo essa sensação maravilhosa; a paz do infinito paraíso espacial.

Após o acoplamento da nave à estação, é hora de começarmos os trabalhos. Eu estou agora sentado ante a um grande equipamento bege cheio de módulos eletrônicos. Minha missão é retirá-los um por um para testes. Os defeituosos serão substituídos. A meu lado há uma escotilha por onde posso avistar a terra. Estou tão compenetrado no serviço que mal tenho tempo para contemplar o lindo azul produzido pela atmosfera terrestre. Quando finalmente paro para olhá-la penso. Daqui nem temos ideia de quanto tu tens sido maltratada. Se eu não tivesse vindo daí não saberia que estás como uma goiaba com bicho: Contaminada por dentro, mas bela por fora.

Após oito horas de trabalho temos que descansar. Nosso compartimento de dormir assemelha-se a um hotel-capsula japonês. Gosto dele é bem confortável, com clima ideal e equipamentos de som. No primeiro dia nem lembro que sofro de insônia e durmo sem nem ter tempo de recapitular a viagem. Em sono profundo começo a sonhar com senas da infância. Nele faço uma visita a casa onde nasci e vivi até os vinte e sete anos de idade. Estou na sala, sento na cadeira de embalo onde mamãe assistia novelas na televisão depois do almoço. Nessas horas ela conversava muito com o Rui, meu irmão caçula. Eu, por ser mais caladão, apenas respondia algumas perguntas. Quem fazia a festa era meu tio Francisco, ao redor de quem ficávamos todos, ele que era oficial do exército, que servia no Rio de janeiro e nos visitava em suas férias. Caminhando pela antessala vou até a cozinha. Quantas lembranças dali: das peripécias do Paulo, que cantava as músicas trocando a letra; das brincadeiras com nossa empregada Maria, que vez por outra urinava na rede mesmo sendo já adulta; das orações antes e depois do almoço. Meu pai costumava reclamar que havia detritos no fundo do prato, e demonstrava-o com o roçar da colher. Lembro até do pedreiro que conversava com a mamãe sem parar de serrar as pernas mancas, quando nossa casa foi reformada. Só não gostava quando seu Décio, nosso vizinho, resolvia matar um dos porcos de sua criação: Quanta pena eu sentia ouvindo os gritos do coitado.

Nas noites em que dormi no espaço tive outros sonhos e os sonos foram maravilhosos, muito em função do conforto fornecido pelo pequeno dormitório e também pelos maravilhosos momentos de descontração com a tripulação e os dias de labor onde pude ganhar muito conhecimento, e, claro, pelos momentos de paz verdadeira que só podemos usufruir no espaço estelar, com ausência da gravidade. Mas os dias foram passando tão depressa que rapidamente demos conta que chegara o momento do regresso. Tomados nossos assentos na nave espacial e com os motores de direção dando os retoques no curso inicial, rumamos em direção á atmosfera terrestre. No início da reentrada pouco a pouco fomos sentindo novamente o desconforto provocado pelos gases que avizinham nosso planeta e iniciou-se um processo de sacolejo e ruído dos infernos acompanhados de uma luminosidade exterior causada pelo absurdo atrito com a atmosfera. Nesse momento lembrei-me de conversas obtidas pelo rádio das impressões que tiveram os astronautas em uma das missões espaciais antes da nossa, onde uma das vozes no momento da reentrada dizia: “O que é aquilo lá fora, somos nós que brilhamos assim”? E um comentário que respondia “É, mas você não ia querer estar lá agora”! Confesso que tive medo no momento mais agudo desse ciclo e o um alívio profundo tão somente percebi que o foco luminoso lá de fora começara a diminuir. Tendo início nossa última volta orbital, e o alinhamento da espaçonave com o ângulo final de aproximação da pista no deserto, comecei a meditar sobre o meu reencontro com a humanidade e não sei explicar como em minha mente veio de imediato uma reflexão. Senhor obrigado por me permitir essa viagem tão maravilhosa. Permita que mais pessoas sejam merecedoras de aventuras como essa e principalmente dê chances de felicidade às pessoas que perderam a vontade de reagir, de externar seus sentimentos por terem perdido a fé na vida. Ao sentir o atrito dos pneus da nave no solo, aí sim, tive orgulho e a tranquilidade para executar os procedimentos finais de pouso que, modéstia a parte, sei fazer com precisão melhor do que ninguém.

Antônio Mangas

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